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Húmus e o espelho da nossa humanidade

  • Foto do escritor: Selma Bellini
    Selma Bellini
  • 8 de abr. de 2024
  • 2 min de leitura

Atualizado: 26 de ago.

"É um erro supor que o homem ocupa um espaço limitado no universo: cada homem vai até ao interior da terra e ao âmago do céu. A parte de cima foi cortada, mas o que resta da alma é um poço sem fundo. Uma obscuridade. Por vezes fala a lei e o hábito. Intrometem-se coisas abjetas a que não sei o nome. Agora é a vez do impulso - agora é a vez do interesse. A mania também tem seus direitos. De mais baixo ascendem ordens que se não chegam a formular. Desço mais fundo no poço e encontro restos sórdidos e candura."


O trecho é de Húmus, de Raul Brandão, uma leitura que é como entrar num sonho de ruínas em construção, acessar o escondido da vida por meio de palavras, afundar num rio turvo e inesperadamente encontrar água iluminada. Húmus é muitas coisas e são vários os momentos de encontrar-se com definições poéticas para o inconsciente. O trecho acima é uma delas.


Com mais de de 100 anos, essa é uma obra importante da literatura portuguesa. Tempo, espaço, personagens, narrador e ação diferem das estruturas vigentes quando lançado. Húmus parece sonho, o narrador se desdobra, há desconexão. Tudo parece estranho, esquisito, é como olhar um espelho quebrado e encontrar imagens grotescas que causam curiosidade, ternura, medo e espanto.


De forma geral, o que Raul faz é retratar uma vila e seus habitantes, um lugar esquecido e envolto num tempo que apodrece tudo, um lugar onde o hábito, a covardia, a inveja, a mentira, a máscara da bondade e as ninharias corroem a vida.


Húmus é feito de destroços e de ruínas, de estrutura fragmentada e de visões fugidias. É a denúncia do nosso simulacro, ou melhor, do que inventamos para nos proteger do absurdo e intenso fato de existirmos com tanto potencial e de estarmos, ao mesmo tempo, em direção à morte. "A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro".


Em Húmus, o embate entre a vida e a morte está em tudo e a vida como simulacro se contrapõe à vida verdadeira em cada página, no íntimo de cada personagem. Mas não é como se houvesse dois pólos opostos. Ao contrário, tudo é fundido e confuso. “E ainda o que nos vale são as palavras, para termos a que nos agarrar."

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