A potência dos vínculos que nos transformam
- Selma Bellini
- há 2 dias
- 2 min de leitura
Do ponto de vista afetivo e simbólico, nem mesmo dois irmãos gêmeos têm o mesmo pai e a mesma mãe, pois cada um constrói um relacionamento próprio com seus pais, formando um laço singular. Isso faz da trama familiar uma complexa teia de relações onde cada um afeta e é afetado pelo outro de maneira única: um caleidoscópio sentimental que muda conforme o ponto de vista.
Muito do processo analítico passa por falar sobre esse emaranhado de histórias, acessar cenas e lembranças, para se questionar sobre como afetamos e somos afetados. Nesse percurso, vamos nos deparando com esse sujeito que somos - construindo e sendo construídos pelas relações.
E é neste território caleidoscópico que estamos quando entramos em “Se adaptar”, de Clara Dupont-Monod. As primeiras palavras da escritora apresentam o fato que marca a família da história: “Um dia, numa família, nasceu um menino inadaptado”. O menino em questão é o terceiro filho e nasceu com uma falha genética. Ele não enxerga, não se movimenta, não fala, quase não expressa reações e não viverá mais do que alguns anos. Dos sentidos, conserva a audição, o olfato e o tato. O que Clara faz é narrar como os irmãos serão afetados e como se relacionarão com ele.
A história é narrada pelas pedras do pátio da casa, dividida em três partes. Na primeira, acompanhamos como o filho mais velho foi impactado pela chegada do “menino inadaptado”. Com apenas nove anos, assume grande parte dos cuidados do irmão, não porque os pais tenham pedido, mas porque é isso que sente necessidade de fazer. Um laço muito forte passa a uni-los e transforma o mais velho de forma radical e definitiva..
A segunda parte conta a história da irmã do meio, que trilha outro caminho, se rebela, busca outras formas de laço familiar e também se vê profundamente modificada, especialmente porque se sente perdida, isolada, com saudades da relação que tinha com o irmão mais velho antes de o menino nascer. É na avó que ela encontra algum alimento afetivo e, ao perdê-la, começa sua guerra particular para resgatar seus laços familiares.
A terceira parte narra a história do último filho, nascido após o “menino inadaptado”, e que carrega, de maneira poética e criativa, a profunda marca do menino que modificou a família.
Os pais estão de pano de fundo do relato, que se concentra nas crianças. As pedras explicam o porquê: “As crianças são sempre as esquecidas das histórias. São conduzidas como ovelhinhas, sendo mais frequentemente postas de lado do que protegidas. Mas as crianças são as únicas que tratam as pedras como brinquedos. Elas nos dão nomes, nos enfeitam, nos cobrem de desenhos e escritos, nos pintam, nos colam dois olhos, uma boca, cabelos feitos de grama, nos amontoam formando casas, nos atiram para ricochetear, nos alinham para demarcar goleiras ou trilhos de trem. Os adultos nos usam, as crianças nos desviam. É por isso que somos profundamente apegadas a elas. E uma questão de gratidão. Nós devemos a elas este relato - todo adulto deveria lembrar que é alguém em dívida com a criança que foi”.
A narrativa possui uma força e uma delicadeza singulares: “A guerra é um laço. A tristeza também.”
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