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A inteligência do sonho

  • Foto do escritor: Selma Bellini
    Selma Bellini
  • 19 de nov.
  • 3 min de leitura

O que pode o sonho? Esta é a pergunta guia para a leitura de “Inteligência do Sonho” (Estação Liberdade), da psicanalista Anne Dufourmantelle. Ela nos leva para o mundo dos sonhos usando psicanálise, literatura, mitologia, filosofia, fragmentos clínicos, imagens poéticas, saberes indígenas e diálogo com outros autores.


Assim como em “Potências da Suavidade” (N-1), a escrita de Anne mostra sua força. Ela é às vezes mais poética, outras mais aforística, e, para os mais apressados, isso pode deixar a leitura superficial. Apesar de seus capítulos breves, a “Inteligência do sonho" pede uma leitura cuidadosa, com tempo para sublinhar, voltar, ler de novo e ir mastigando com cuidado. O estilo dela pede isso.


O que Anne nos propõe é pensar o ato de sonhar como uma inteligência que guarda uma força poderosa de criação, expansão e transformação. E ela avisa já na dedicatória para quem escreveu o livro: “a quem sabe o que podem os sonhos”. Ela também quer mostrar que o sonho não é uma inteligência apartada de nossa vida desperta, mas parte integrante de quem somos e do que podemos. As primeiras linhas do livro dão esse tom: “Acreditamos viver em outro lugar que não aquele de nossos sonhos, mas façamos a hipótese inversa: nós nunca os deixamos, nossos sonhos zelam por nós”.


O caminho que a psicanalista traça passa pelos modos operatórios dos sonhos e sua função de exploração imaginária e de mensageiro interno de desejos, traumas, maravilhas, apagamentos, inspirações, lucidezes e do inesperado… Ela enfatiza que o sonho é uma escritura única de cada sonhador. “O sonho é pura inteligência. (…) O que pode o sonho é imenso. Reparar, rememorar, profetizar, escutar, advertir, aterrorizar, apaziguar, desvelar, liberar. E nos permitir esquecer. O sonho é um modo singular de presença”.


Um ponto importante é que não basta sonhar. O sonho pede portas abertas, ele quer nossa hospitalidade e pede para ser contado. Não há descoberta do sonho sem o relato posterior. Encontrar as palavras para contar o sonho é dar sentido a ele e ver-se também nesse processo de reconstrução do sonhado. Apenas o sonhador pode mostrar seu sonho ao mundo e o modo como ele faz isso também diz algo sobre ele, é um processo único.


Anne fala do sonho também em sua potência coletiva e política. Ela aponta para os riscos de um mundo em que os horizontes se fecham porque nossas necessidades vão sendo reguladas e há uma tecnicização crescente. Dito assim parece algo complicado, mas o que Anne aponta, sem dizer especificamente, é o que, por exemplo, vivemos na relação com a tecnologia: horas e horas de tela rolando feeds infinitos que nos esgotam, algoritmos feitos para nos manter cativos nas redes, a queda das experiências e da sensibilidade de um corpo que se anestesia pela enxurrada de informações. Não há respiro, ficamos submissos ao mundo técnico que controla e esgota nossa vontade de agir.


Como sonhar e falar de sonhos num mundo como esse? Bom, pois é aí que mais precisamos dos sonhos: “o sonho tem esse privilégio extraordinário de ser, como na hipótese formulada por Freud, fora do tempo, mas de poder significar o tempo. A inteligência do sonho é, portanto, capaz de pensar essa mutação em tempo real”.


Termino esse texto usando as palavras que Anne usou para encerrar seu livro e deixo o convite para que a leiam com calma. Esse é um livro feito para sonhar e para se comprometer em investigar a inteligência dos seus sonhos“O que pode o sonho? A questão é mais crucial que nunca. Com a capacidade de sonhar, o humano convoca uma inteligência tão vasta da percepção, que transborda de toda parte a consciência. Aquilo que informa a inteligência do sonho, cujos anjos e gênios são figurações tardias e magistrais, é um chamado sem cessar renovado a uma conversão cujas possibilidades de criação serão sempre um desafio ao fechamento programado dos horizontes ilimitados”.


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“Inteligência do Sonho” teve sua primeira edição em 2012 e agora foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela Estação Liberdade. Este é agora o terceiro título da autora lançado em português e soma-se à “Potências da Suavidade” (N-1) e "Da Hospitalidade: Anne Dufourmantelle Convida Jacques Derrida a Falar da Hospitalidade” (Editora Escuta). Outras obras da autora, ainda sem tradução para o português, incluem “Elogio ao Risco”, “Em defesa do segredo”, “Em caso de amor: psicopatologias da vida amorosa”, entre outros.


A filósofa e psicanalista Anne Dufourmantelle nasceu em Paris em 1964. Com uma formação transdisciplinar e uma escrita potente, ela desenvolve reflexões que abordam o pensamento clínico num diálogo com questões existenciais e políticas, trazendo literatura, filosofia e outros saberes para a conversa. Anne faleceu em 2017.

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